sábado, agosto 04, 2007

O Tapete (II)

Na outra tarde foi a mesma coisa: deitei no tapete e fiquei imaginando bobagens, mas nada aconteceu até que eu comentasse “investigador do sobrenatural” em voz alta. E eu estava em uma casa caindo aos pedaços, cheio de baganas de cigarro em volta e máquinas esquisitas por todo canto. Havia livros em torno de mim. Inclusive um livrinho vagabundo, escrito à máquina e mimeografado, chamado “Poltergeist”, que continha o que pareciam ser descrições de fenômenos paranormais relacionados a espíritos brincalhões no território brasileiro. Datados em ordem cronológica, com descrição dos equipamentos usados e os relatos dos moradores dos locais.

Agora, se você acha que eu estava com medo, se enganou feio: medo não descreve o que eu estava sentindo. Pavor. Pavor seria melhor, especialmente depois que eu li a descrição do poltergeist que era um vulto negro, só entrevisto, nunca visto, com unhas afiadas que nem navalha e que cortava as pessoas e cadeiras da casa, mesmo elas estando acordadas ou juntas. Resolvi fechar o livro e prestar atenção aos arredores.
Depois de um tempo considerável meu olhar pousou em umas anotações em cima de uma mesa. Tava na cara que a letra era minha, porque só eu conseguiria entender aquilo. E isso porque estou acostumado com a grafia estranha que sempre sai quando escrevo coisas à mão: o “F” virando um “T”, o “E” um “P”, e assim ia. A última frase era: “a coisa mais assustadora que pode acontecer a alguém é estar em uma casa antiga e sem luzes, na companhia de si mesmo”. Senti simpatia pelo cara. Aquilo queria dizer que ele também estava se borrando todo. Pelo jeito, eu não devia ser grande coisa como “investigador do sobrenatural”. Aliás, minha imaginação superexcitada estava me levando a ver sombras se movendo em todos os cantos. Até sussurros ao longe. Experimentei usar uma das máquinas, mas o troço só bipou na minha cara.

Experimentei outra. Depois outra. A única coisa que eu consegui usar foi uma lanterna de luz negra, que captou traços orgânicos em toda parte ao meu redor, sob a forma insidiosa de insetos e cocozinhos de ratos. Nenhuma poça de sangue (nem sei de onde é que eu tirei isso), nenhum membro decepado (acho que isso eu tinha lembrado do filme Evil Dead). Aí me pareceu ouvir passos que se aproximavam. E uma mão de couro me agarrou pelo ombro.

Quase me caguei. Era um cada (de luvas) com óculos redondos e cara de rato que me disse que tinha vindo me render. Era dele o próximo turno de vigia. Agradeci, juntei as anotações, deixei os livros com ele e saí de lá. Passei pela porta e

Abri os olhos e um jorro de luz invadiu meus olhos. A janela da sala estava aberta. Levantei do tapete. Se eu não tivesse tão assustado, aquela experiência teria sido uma das mais chatas da minha vida inteira. Precisava lembrar disso – e da anotação – pra usar na próxima palestra que fosse fazer.

Mas assim foi: bastava deitar sobre o tapetinho – que durante o dia ficava disfarçado como tapeçaria – e dizer o que queria para sonhar (ou viver) histórias com que se sonhava de uma forma tão real como se estivesse vivendo-as de verdade. Como se você entrasse em sua imaginação e pudesse viver lá dentro por períodos variáveis de tempo. Dependia do que te acordasse.

O tempo mais longo que fiquei nesse estado foram três semanas como mergulhador, descobrindo aos poucos os segredos de Atlântida. Foram semanas fascinantes, mas “acordei” poucos segundos após ter adormecido – ou invocado a visão, sei lá. Também fiquei muito tempo em Jerusalém, acompanhando os últimos dias de Jesus. Até apertei a mão dele. Ele não entendeu muito o fato de eu balançar a mão pra cima e pra baixo, mas tomou como um gesto de encorajamento. A hora de dúvida dele, em que ele pedia que o cálice fosse afastado, eu perdi porque estava dormindo. Minhas viagens mais curtas foram como “viajante do tempo” (que era uma tentativa de fazer a mesma coisa, visitar Jesus, mas acho que a máquina explodiu na minha cara) e “lendo o Livro do Destino”, que eu tirei de um conto da mitologia árabe, o Livro onde tudo está escrito, passado e futuro de todos. Nem bem abri o troço e uma coisa que eu não vi falou algo em uma língua que eu não conhecia, me agarrou pelo ombro e me atirou pra fora. Acordei com dor nas costas. Na sala, claro.

Minha esposa ficava intrigada com a minha mania de “cochilar” de tarde (nunca fui disso), mas naquela sala vivi coisas fascinantes: viajei no Nautillus com Nemo; visitei o Espaço e as Colônias terrestres em outros planetas, no futuro; conheci a Arca, a Biblioteca Definitiva, depois da extinção da Humanidade; brinquei com os Deuses do Olimpo e visitei a Biblioteca de Alexandria. Nadei com sereias (vampiras, mas isso eu descobri depois), conheci Arthur e Merlin, fui analisado por Freud (e acabei dando um tapa na careca dele, só pra poder dizer que tinha feito isso), ouvi Beethoven compor a Nona, tentei ajudar Dom Quixote, ajudei a matar Drácula, viajei com Gulliver. Só pra citar algumas coisas. Não importava se ficção ou realidade, o tapete me levava onde eu pedia, no papel que me impusesse. Conheci a alegria selvagem e o remorso de ser um lobisomem em lua cheia e acordei enjoado pelo gosto de carne humana. Visitei as profundezas do mar e tumbas de heróis míticos. Estava vivendo vidas e vidas fora de minha vida normal. O tapete era a melhor coisa que tinha me acontecido.

Até que a minha esposa passou na minha frente com uma calça particularmente apertada. Brinquei com ela, alguma coisa sobre rebolar pra mim. Ela sorriu e falou, de brincadeira:

- Vai pro inferno.

Eu estava sobre o tapete.

Sei que disse que o maior tempo que estive sonhando foi por três semanas. Mas minha visita ao inferno durou mais. Muito mais. Ou isso era por causa do tempo subjetivo. Não faço idéia de quanto tempo passei por lá. Uma vida seria pouco para descrever as coisas que vi, quantas planícies de vidro moído tive que atravessar nu, quanto tempo nadei em lagos de chamas. Tive que atravessar o Inferno para sair. Todo ele. Dos bosques, sendo perseguido por cachorros com cabeças humanas até as regiões geladas. Não vou descrever isso aqui. Não posso. A maior parte das lembranças eu bloqueei, as outras não são isentas de dor. Tudo era dor.

Minha esposa me segurava nos braços quando acordei. Eu estava gritando. Foi nesse dia que meu cabelo levou um puxão firme em direção ao grisalho, e nesse dia coloquei o tapete num balde de metal, joguei álcool por cima e o queimei. A coisa gritou como algo vivo, e tentou sair do balde, mas impedi com minhas mãos, depois com uma panela. Até que parou de se mexer e de lutar lá dentro.

Se você acha que foi bobagem, que agi por trauma, tudo bem. Eu também acho. E sei que o tapete poderia ter me levado a muitos outros lugares extraordinários. Por exemplo, nunca vi o céu. Mas os (anos?) (séculos?) que passei no Inferno não deixam que eu me arrependa do que fiz. Nada que permita uma viagem assim pode ser benigno. Quando penso em me arrepender olho para as cicatrizes em minhas mãos. Penso na coisa berrando e tentando me arrastar para a fogueira com ela. E então me tranqüilizo.

Um comentário:

Jonatas Tosta disse...

Não se ofenda, cara, mas na minha terra serlouco é uma benção... então você deve ter levado um tapa divino que despertou toda insanidade oculta ou não no seu cérebro!

Seu texto é bom mesmo, como poucos o são. Não é vaga impressão ou lizonja, mas está cada vez mais raro texto descentes na rede e digo que também não é fácil escrever algo que preste nesse mar sujo de informação e influências.

Se você quizer, manda o seu banner e endereço pra mim, que eu o coloco no meu blogue... já vou por o linque se você só se contentar com isso. Se gostou do meu, também não ficaria nada chateado de vê-lo por aqui...^^

Abrção, e valeu mesmo pelo comentário!
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