sábado, agosto 04, 2007

O Tapete (I)

A dona da lojinha de lembranças ficava numa felicidade orgásmica quando me via. Desde que ela tinha me mostrou uma escultura que confessou não saber o que era (mulher, três cabeças, seis braços) e eu lhe disse que era a Hécate, a deusa das bruxas. Aí ela vinha com uma avalanche de perguntas sempre que eu entrava lá, como se eu fosse um tipo de especialista em besteirologia.

- Esse elefantinho traz sorte, né?

- O elefantinho é Ganesh, eu acho. Deus indiano. Facilita as jornadas. Montava num rato.

- Não tem rato na estatueta.

- Pode tar embaixo do saiote dele. Que me lembre, um elefante é consideravelmente maior que um rato.

- Tem certeza?

- Sim, um elefante é bem maior que um rato.

- Estou falando do nome.

- Não.

Aí ela ia, anotava “Ganesh, facilita as jornadas” em um adesivo e colava na estatueta mesmo assim. Sempre tinha alguma coisa. Ah, ela também me mostrava cada item da loja quando me via olhando alguma coisa:

- Esse chacal aí é Anúbis. Ele protege os lares.

- Achei que ele fosse juiz dos mortos.

- É, mas ele protege os lares também. A da cabeça de gato é...

- ...Bast. Eu sei. Li num gibi. O que é que ela protege?

- Ela traz sorte.

- Por quê?

- Não sei, tá no adesivo.

- O. K. – como eu sabia o tipo de informações que andava nos adesivos, não dava lá muita bola. Foi lá que eu vi o tapete.

- Esse tapete...

- Ah, tem muitos símbolos nele. Aquele ali é o olho de Hórus, que era um falcão. Eu sei que o símbolo espanta o mau-olhado.

Hórus deveria estar numa jornada dupla de trabalho. Eu achava que ele era o Sol. Mas insisti:

- E os outros símbolos?

- Ah, esses eu não sei. Esse aqui é indiano. Essa aqui do lado é aquela que tu me indicaste outro dia.

- Hécate.

- Isso.

“Tapetinho eclético”, pensei. Era uma misturada de símbolos religiosos com uma cara suspeita, mas bonitinho. Também só faltava uma etiqueta de “usado” nele. Perguntei o preço.

- Cem reais.

Bom, não era caro. E eu precisava de um outro tapete pra sala, porque quase tinha queimado o oficial com um cigarro, o que tinha deixado a patroa com um olhar azedo por três dias. Comprei, e ela me deu instruções a respeito de como pendurá-lo na parede para atrair bons fluidos. Chegando em casa, estendi na sala por cima do “oficial” e deitei em cima, como costumava fazer. Acendi um cigarro e fiquei pensando em meu óbvio grande destino como escritor e nas coisas magníficas que escreveria quando achasse que estava “pronto”.

Aí me imaginei num seminário. Eu poderia até concluir uma especialização e preencher o que eu achava que era uma falha nos cursos literários: todos achavam que “literatura séria” não incluía ficção científica, livros de fantasia nem de terror. Taí, poderia ensinar essas coisas. Comentei em voz alta:

- Professor de ficção científica e de literatura de horror... – com um sorriso nos lábios.
Nem lembrei de incluir quadrinhos.

Aí aconteceu. A próxima coisa que eu vi foi um auditório cheio de estudantes. Eu estava parado na frente dele, cheio de anotações na mão. Um silêncio respeitoso desceu assim que perceberam que eu estava ali. Um fulano antipático chegou para a frente, pegou o microfone e comentou: “Seja bem-vindo, professor. Desculpe, mas não notamos que o senhor havia chegado.”

“Havia”? Quem é que usa isso em uma sentença hoje em dia? Olhei para o auditório cheio, sentindo meus bagos encolherem ao tamanho de duas uvas e um friozinho começando a crescer na minha barriga.

- Posso colocar o primeiro slide?

Quem tinha perguntado era o cada de óculos e terno, o antipático. Aquiesci com a cabeça. Claro que podia. Se ele tivesse perguntado se era pra trazer o orangotango, eu não teria reagido diferente. Apareceu um slide em uma tela enorme atrás de mim. Era o tema da palestra e descrição de quem eu era, meus trabalhos e meu currículo. Acho que a única coisa que eu sabia ali era o nome. E, que eu soubesse, fora alguns arroubos de juventude nunca tinha pensado em escrever um livro de terror. Mas li alto no microfone os dados que estavam ali. Uma salva de palmas. Ei, não era tão ruim, afinal. Pensei em me curvar pra agradecer, num estilo teatral. O slide mudou de novo, mostrando o que parecia ser uma pintura de Goya. Um grotesco. Eu conhecia aquilo. Mas o que é que eu pretendia falar a respeito?

As anotações: no primeiro cartão (tinha umas folhas, também, que descobri ser o comentário final, depois das perguntas, pra encerrar a palestra. Eu podia tentar pular as perguntas.) estava escrito:

Grotesco. Slide 1, pintura de Goya. Por que é que as deformidades são tão notáveis?Por que a fascinação pelos traços exagerados na caricatura, na arte? A mente humana apreende processos comunicacionais, mas realiza as conexões entre os processos ela mesma. Vemos algo porque queremos ver. Essa percepção subjetiva parece nos atrair para mundos além do mundo. Às vezes sombrios, às vezes fantásticos. De onde vem essa necessidade ficcional?

Confesso que não sabia. Aliás, as dicas dos cartões eram prolixas, mas eu não tinha como juntá-las em uma sentença. Olhei de novo para a pintura. Bão, começar descrevendo a coisa era um começo. E também uma redundância, mas melhor que ficar quieto. Olhei para a pintura e comecei a descrever, ressaltando os traços caricaturais. Tinha até uma legenda com o nome do quadro. Eu nunca imaginei que poderia ser tão organizado.

Fluiu. O engraçado é que fluiu. De maneira natural, apareciam coisas que havia lido eras atrás e deveriam estar guardadas em algum canto da montanha de lixo que eu chamava de “cérebro”. E as anotações eram suficientes para me manter no assunto, só precisava evitar divagar como era meu costume. A única coisa que eu tinha que fazer era dar “à audiência” um tempo malandro para olhar cada slide antes de começar a falar. Tempo esse que eu usava lendo os comentários nas fichas para tentar transformá-los em um discurso coerente. Não era difícil. O tal professor parecia ter as mesmas referências e opiniões que eu. Além do mesmo nome. Às vezes aparecia alguma referência teórica desconhecida que era recortada do assunto. Se estava no slide, eu terminava de falar e lia em voz alta o trecho e o nome do autor/a. Sempre vinha a propósito.

O segundo slide era de uma pintura de Bosch, depois começaram a aparecer os autores e pequenas citações das obras. Todas conhecidas e queridas. Estava me sentindo em casa ali. Só faltou tirar os sapatos. Li o discurso final. Não houve perguntas. Fui ovacionado no fim.

E levantei a cabeça do tapete, o cigarro apagado entre os lábios. “Que loucura.”, pensei. Nisso a minha proprietária apareceu com sacolas de supermercado, anunciou que estava com vontade de comer um arroz com galinha “campeiro” e me relegou à cozinha por uma hora. Depois me chamou de volta, encantada com a “tapeçaria” que eu tinha comprado e instando para que eu pendurasse o troço na parede da sala. Não quis comentar que era um trapo bonitinho para eu deitar em cima e não arriscar queimar o tapete “oficial”.

5 comentários:

Anônimo disse...

" fiquei pensando em meu óbvio grande destino como escritor e nas coisas magníficas que escreveria quando achasse que estava “pronto” "

Não pude conter as gargalhadas!


Ps.: Perdoe-me a petulância, mããs, dá uma revisadinha no texto que tem alguns erros de digitação.

Anônimo disse...

hããã ... as gargalhadas a que me referi são pura auto-crítica, viu!

Anônimo disse...

Hahahahahaha!!!
Não esquenta... autocrítica é muito legal... desde que não chegue no suicídio...
XD
E nem revisei o troço, escrevi e postei, vou revisar, sim. (Cê quis dizer que também espera ficar "pronto"???)
Abraço.

Anônimo disse...

Bah véio, a pergunta aí é mais profunda do que minha vã psicologia de butequim permite descrever!
Um dos meus problemas é não "meter a cara". Sempre de resguardo, imaginando o "como seria", mas sem tutano pra se botar feito louco.
Enfim...
Ha .. mas não é tanta auto crítica assim, para beirar o suicídio pô!
Ao menos é o que me aconselha o psicoterapeuta. Ainda mais depois daquela vez que ele arregalou o olhos e perguntou: O que é isso nos seus pulsos?
;-)

Paps disse...

Amei! Os dois tapetes, que na verdade eram um só... Ou seja, amei as duas viagens no tapete.
Só fiquei com uma duvidazinha pequenina... Como vc vai fazer para livrar o tapete da patroa da ameaça do cigarro durante as suas viagens agora?
Beijocas!!!