A Visita
Bateram na porta bem na hora do Mr. Bean. Claro, nada é sagrado hoje em dia. Levantei reclamando do sofá, comentando pra mim mesmo quem seria o palhaço e imaginando como seria engraçado se fosse realmente um palhaço. Quer dizer, a surpresa da coisa. O inusitado. Se é que se pode chamar assim.
Mas era o vizinho da diagonal de baixo (apartamento em frente ao meu, um andar abaixo), Afonso. Muito pálido, cabelo revolto, preocupado. Não era a primeira vez que ele aparecia ali em casa assim. O Afonso era um grande cara, em todos os sentidos: era boa-pinta, tinha mais de cento e dez quilos, um bom bebedor, desses que não fica chato, era doutor em picaretagem filosófica (falava de qualquer assunto). Boa companhia, exceto por dois itens em minha lista: gostava de música e brigava o tempo todo com a mulher, a Maggi (não se pronuncia “méguie”, é “magi” mesmo. Foi apelidada em homenagem ao caldo nobre da galinha azul.)
A parte da música é fácil de adivinhar: volume alto, uma seleção muito própria de discos de Heavy Metal, praticamente o dia inteiro. As brigas com a Maggi são mais difíceis de explicar. Porque, olhando para os dois, você tem a idéia do casal perfeito, entende? Os dois sempre vestidos de preto, com camisetas de banda, fazendo tatuagens parecidas e tentando engordar juntos até uma gloriosa explosão final. Regados a muita cerveja e som a todo volume. Os dois cabeludos. Barba, só ele tinha (acho). Esse tipo de casal, que é tão parecido que fica difícil diferenciar os dois em uma sala escura.
Agora, viviam quebrando o pau. Coisa feia, de descambar pra violência mesmo. Ela era especialista em arremesso de troços que se encontrassem ao redor. Ele ia mais no corpo-a-corpo. Seguido a música era interrompida pelo barulho de alguma coisa quebrando e um grito, ou de objetos pesados batendo nas paredes (os que ela acertava nele, não ouvíamos daqui. Ele era bem mais macio que a parede.)
Então, não era incomum ele aparecer aqui no mesmo estado, olhar meio perdido, pálido pela explosão de adrenalina e com o cabelo revolto, como se tivesse acabado de passar um ciclo econômico na máquina de lavar roupas. Costumávamos conversar um pouco, beber um muito e ele normalmente saía mais calmo, para casa ou para um bar, dependendo da seriedade da coisa. Nunca ficava muito tempo e, normalmente, no outro dia já andavam agarrados pelo elevador ou pela escada, um esfregando os roxos do corpo do outro como se fossem estigmas de amor.
Naquele dia ele estava mais preocupado do que furioso. Eu cumprimentei, convidei-o pra sentar e ele ficou lá, de cabeça baixa e olhar perdido. Já estava até esperando a visita, porque eu e minha senhôura tínhamos ouvido um quebra-quebra há pouco e ela havia olhado pra mim com um jeito sacana e dito que o “meu amigo deveria estar subindo as escadas”. Fazia um tempinho que isso não acontecia, uns meses, já.
Após um tempo regulamentar de silêncio, perguntei o que tinha acontecido, se a briga tinha sido muito séria. Ele só concordou com a cabeça. “Ih”, pensei cá comigo, “isso vai ser demorado. Melhor eu encher a cara dele.” E servi um uísque pra ele e um uísque com água pra mim. Eu não gosto, mas acho bom acompanhar. Ele tomou tudo de um trago e eu, que estava meio dobrado pra sentar na poltrona, tive que levantar pra pegar outro.
A conversa foi diferente: eu perguntava as coisas e ele só ficava ali, paradão, olhando para as paredes e suspirando. Então tinha um arranco, como se fosse dizer alguma coisa, depois desistia e continuava quieto. Passou um tempão assim, até a minha esposa chegou e perguntou (pra mim) o que estava acontecendo. Só dei de ombros, não sabia de nada. De repente ele levantou a cabeça, rápido, como se tivesse ouvido alguma coisa, e foi correndo para o banheiro. Bem a tempo, aliás, porque a campainha tocou nesse instante. Era a Maggi. Estava tão pálida e desgrenhada quanto ele, com aquele olhar tão óbvio de quem tá puta da cara que não vale a pena perguntar nem tentar discutir nada. Cê sabe como é.
- Cadê o Afonso.
- No banheiro. Correu que nem um coelho quando te ouviu chegando – sorri. (Sim, eu sei. Sou mesmo.)
Ela levantou a voz, tipo, pro prédio inteiro ouvir...
- Pois FALA pra esse BÊBADO que quando ele sair do banheiro volte pra CASA. Que é o LUGAR dele, não se ESCONDENDO no vizinho.
Pisquei o olho pra ela. Ela largou um sorriso daqueles, cruéis. Tipo “nós, eu e você, nos entendemos e eu sei que você é filho da puta”. Tentei devolver o olhar, mas sou uma bolha pra fazer cara de mau. Ela me ganha fácil, fácil.
Aí ela saiu pelo corredor. Fechei a porta.
- Afonso, ela já foi.
Nada. Só faltava o gordo ter morrido de medo no meu banheiro. Eu ia levar um ano pra desentalar ele lá de dentro. Bati na porta.
- Ela já foi.
- A Maggi?
- Não, a Luíza Brunet. Te procurou, disse que de repente tinha dado uma vontade louca de dar pra você, mas, como ce tava ocupado, ela procurava outro. E foi embora.
- Você VIU a Maggi?
- Difícil não ver. Acho que ela pesa mais que você.
Ele olhou pra mim, e eu gelei: nunca tinha visto tal pavor, pavor mesmo, nos olhos de uma pessoa.
- Cara, a Maggi tá morta há quatro dias. Eu matei ela sem querer. Ela começou a quebrar meus discos e eu perdi o controle e acertei ela com o martelo de bife. Mas ela voltou, e eu não agüento mais. Por favor, vai lá dizer pra ela parar de me perseguir...
E foi isso. Tentei acalmar o Afonso um pouco, depois liguei para a polícia. Eu não estava acreditando muito naquela história – um martelo de madeira, esses de bater bife não ia nem arranhar a superfície da Maggi. Mas a polícia confirmou que encontrou o cadáver. Tava no chuveiro deles, fedendo, já. O Afonso foi recolhido para uma delegacia, e de lá direto para o Pinel, porque não estava em condições de muito mais que gritar ou enfiar colheradas de papa na orelha.
Eu? Eu não sei nem por que é que a luzinha acende quando a gente abre a porta da geladeira. Não faço idéia do que aconteceu. Mas lembro da última visita da Maggi, e do seu sorriso, e parece que lembro também de alguma coisa estranha, não-humana quando vi ela andando no corredor em minha direção. A luz estava ligada? Ah, não sei. E prefiro continuar não sabendo disso para o resto de minha vida.
Mas era o vizinho da diagonal de baixo (apartamento em frente ao meu, um andar abaixo), Afonso. Muito pálido, cabelo revolto, preocupado. Não era a primeira vez que ele aparecia ali em casa assim. O Afonso era um grande cara, em todos os sentidos: era boa-pinta, tinha mais de cento e dez quilos, um bom bebedor, desses que não fica chato, era doutor em picaretagem filosófica (falava de qualquer assunto). Boa companhia, exceto por dois itens em minha lista: gostava de música e brigava o tempo todo com a mulher, a Maggi (não se pronuncia “méguie”, é “magi” mesmo. Foi apelidada em homenagem ao caldo nobre da galinha azul.)
A parte da música é fácil de adivinhar: volume alto, uma seleção muito própria de discos de Heavy Metal, praticamente o dia inteiro. As brigas com a Maggi são mais difíceis de explicar. Porque, olhando para os dois, você tem a idéia do casal perfeito, entende? Os dois sempre vestidos de preto, com camisetas de banda, fazendo tatuagens parecidas e tentando engordar juntos até uma gloriosa explosão final. Regados a muita cerveja e som a todo volume. Os dois cabeludos. Barba, só ele tinha (acho). Esse tipo de casal, que é tão parecido que fica difícil diferenciar os dois em uma sala escura.
Agora, viviam quebrando o pau. Coisa feia, de descambar pra violência mesmo. Ela era especialista em arremesso de troços que se encontrassem ao redor. Ele ia mais no corpo-a-corpo. Seguido a música era interrompida pelo barulho de alguma coisa quebrando e um grito, ou de objetos pesados batendo nas paredes (os que ela acertava nele, não ouvíamos daqui. Ele era bem mais macio que a parede.)
Então, não era incomum ele aparecer aqui no mesmo estado, olhar meio perdido, pálido pela explosão de adrenalina e com o cabelo revolto, como se tivesse acabado de passar um ciclo econômico na máquina de lavar roupas. Costumávamos conversar um pouco, beber um muito e ele normalmente saía mais calmo, para casa ou para um bar, dependendo da seriedade da coisa. Nunca ficava muito tempo e, normalmente, no outro dia já andavam agarrados pelo elevador ou pela escada, um esfregando os roxos do corpo do outro como se fossem estigmas de amor.
Naquele dia ele estava mais preocupado do que furioso. Eu cumprimentei, convidei-o pra sentar e ele ficou lá, de cabeça baixa e olhar perdido. Já estava até esperando a visita, porque eu e minha senhôura tínhamos ouvido um quebra-quebra há pouco e ela havia olhado pra mim com um jeito sacana e dito que o “meu amigo deveria estar subindo as escadas”. Fazia um tempinho que isso não acontecia, uns meses, já.
Após um tempo regulamentar de silêncio, perguntei o que tinha acontecido, se a briga tinha sido muito séria. Ele só concordou com a cabeça. “Ih”, pensei cá comigo, “isso vai ser demorado. Melhor eu encher a cara dele.” E servi um uísque pra ele e um uísque com água pra mim. Eu não gosto, mas acho bom acompanhar. Ele tomou tudo de um trago e eu, que estava meio dobrado pra sentar na poltrona, tive que levantar pra pegar outro.
A conversa foi diferente: eu perguntava as coisas e ele só ficava ali, paradão, olhando para as paredes e suspirando. Então tinha um arranco, como se fosse dizer alguma coisa, depois desistia e continuava quieto. Passou um tempão assim, até a minha esposa chegou e perguntou (pra mim) o que estava acontecendo. Só dei de ombros, não sabia de nada. De repente ele levantou a cabeça, rápido, como se tivesse ouvido alguma coisa, e foi correndo para o banheiro. Bem a tempo, aliás, porque a campainha tocou nesse instante. Era a Maggi. Estava tão pálida e desgrenhada quanto ele, com aquele olhar tão óbvio de quem tá puta da cara que não vale a pena perguntar nem tentar discutir nada. Cê sabe como é.
- Cadê o Afonso.
- No banheiro. Correu que nem um coelho quando te ouviu chegando – sorri. (Sim, eu sei. Sou mesmo.)
Ela levantou a voz, tipo, pro prédio inteiro ouvir...
- Pois FALA pra esse BÊBADO que quando ele sair do banheiro volte pra CASA. Que é o LUGAR dele, não se ESCONDENDO no vizinho.
Pisquei o olho pra ela. Ela largou um sorriso daqueles, cruéis. Tipo “nós, eu e você, nos entendemos e eu sei que você é filho da puta”. Tentei devolver o olhar, mas sou uma bolha pra fazer cara de mau. Ela me ganha fácil, fácil.
Aí ela saiu pelo corredor. Fechei a porta.
- Afonso, ela já foi.
Nada. Só faltava o gordo ter morrido de medo no meu banheiro. Eu ia levar um ano pra desentalar ele lá de dentro. Bati na porta.
- Ela já foi.
- A Maggi?
- Não, a Luíza Brunet. Te procurou, disse que de repente tinha dado uma vontade louca de dar pra você, mas, como ce tava ocupado, ela procurava outro. E foi embora.
- Você VIU a Maggi?
- Difícil não ver. Acho que ela pesa mais que você.
Ele olhou pra mim, e eu gelei: nunca tinha visto tal pavor, pavor mesmo, nos olhos de uma pessoa.
- Cara, a Maggi tá morta há quatro dias. Eu matei ela sem querer. Ela começou a quebrar meus discos e eu perdi o controle e acertei ela com o martelo de bife. Mas ela voltou, e eu não agüento mais. Por favor, vai lá dizer pra ela parar de me perseguir...
E foi isso. Tentei acalmar o Afonso um pouco, depois liguei para a polícia. Eu não estava acreditando muito naquela história – um martelo de madeira, esses de bater bife não ia nem arranhar a superfície da Maggi. Mas a polícia confirmou que encontrou o cadáver. Tava no chuveiro deles, fedendo, já. O Afonso foi recolhido para uma delegacia, e de lá direto para o Pinel, porque não estava em condições de muito mais que gritar ou enfiar colheradas de papa na orelha.
Eu? Eu não sei nem por que é que a luzinha acende quando a gente abre a porta da geladeira. Não faço idéia do que aconteceu. Mas lembro da última visita da Maggi, e do seu sorriso, e parece que lembro também de alguma coisa estranha, não-humana quando vi ela andando no corredor em minha direção. A luz estava ligada? Ah, não sei. E prefiro continuar não sabendo disso para o resto de minha vida.
6 comentários:
Bom, foi uma visita no mínimo inusitada...
Oo
Fala, Vino, blz? Gostei do conto, mas tenho que confessar, por causa da pressa pulei umas partes e só quando cheguei no fim (bom paca) que fui ver a cagada... merecia ter sido lido inteiro! Paciência... depois eu volto e leio direito. Abraço.
Li todo, muito engraçado... e pertubador. Tava imaginando um final onde a dona dele morria, mas a parte do ...“nós, eu e você, nos entendemos e eu sei que você é filho da puta”... afastou a idéia "fora-deste-mundo" e deixou o final imprevisível.
Abs
Boua. Ficção simples, de qualidade, um bom final, pouca enrolação. Gostei.
Nossa... tou abobado. Até eu republicar o blog, a única visita que tinha era eu.
Agora tem até comentários!!!
XD
Brincadeira. Obrigado, gente, por lerem a coisa. (Até vc, Kio... o que vale é a intenção... XD)
Querendo apontar defeitos, é um favor. Como eu comentei, são contículos que pipocam na mente ao pensar em escrever alguma coisa pro blog. Logo, devem estar cobertos de erros de digitação ou gramaticais, mesmo.
Abraço.
Muito bom... bom mesmo!
O problema é que você escreve na primeira pessoa. Como se estivesse relatando algo corriqueiro que de fato aconteceu! Aí eu vou lendo, acreditando na sua história (mesma coisa com o conto da tua irmã e teus dois "eus") aí me confundo entre realidade e ficção. Sou meio devagar mesmo! eita....
...
brincadeira, não vá pensar que sou tão toupeira assim! Gosto dessa coisa de cumplicidade nos contos!hehe
Mainardi
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