terça-feira, julho 10, 2007

O Relato do Antigo Marinheiro - Parte III



Foi com crescente desconforto que ouvi os comentários sobre um certo padrão na irregularidade do solo oceânico abaixo. Se, por um lado todos estavam convencidos de que o haitiano estava correto e que algas fosforescentes eram as responsáveis pela luz que vinha de baixo, alguns de nós haviam notado simetrias no fundo oceânico. Um marinheiro recuou horrorizado com a convicção de que havíamos encontrado as ruínas assombradas do continente perdido de Mu. Foi desdenhado pelos outros, então retornou de mau humor a sua rede. Embora o fenômeno fosse realmente muito curioso, a maioria dos homens retornou a seus dormitórios em pouco tempo, apenas os dois vigias e eu ficamos no convés. Conversamos um pouco, fumando e prestando pouca atenção à luz sobrenatural do fundo do oceano, embora o cheiro que nos punha nervosos nos levasse às vezes a suspeitar um movimento nas formas vagas abaixo de nós, ou uma mudança no teor da luminosidade, que atingiu o seu ápice pouco antes do horizonte começar a clarear anunciando a aurora. Parecia uma luz apodrecida, doentia, amarelo-esverdeada. Às três e meia uma leve brisa começou a soprar, e a névoa desapareceu totalmente em coisa de dez minutos. Fomos chamar o capitão, esperando sair daquela região estranha do mar o quanto antes. Mas, quando chegamos a sua cabine, ele já estava desperto, pois um movimento forte podia ser percebido nas águas agora. Houve um grito no convés.
Quase toda a tripulação estava desperta. Corremos para fora, e encontramos um dos vigias encostado no mastro principal, gritando como se todos os demônios de inferno estivessem atrás dele. “É o diabo!”, gritava ele, enquanto tentávamos acalmá-lo e preparávamos as velas. Então olhei para o mar e vi o que ele havia visto.
Era um polvo e uma lula gigante. Era um peixe-diabo e um peixe-morcego. Era espectralmente branco... e era também humano em sua estrutura facial, com uma expressão de horror que me gelou os ossos e me jogou no sangue uma carga de adrenalina tão grande que tive que me segurar no corrimão com ambas as mãos para não sair dali correndo e gritando como um doido. E por maior que fosse o pandemônio de peixes indescritíveis à sua volta, com seus formatos bizzarros e pré-históricos, eles não o estavam devorando. Apenas passando, subindo das profundezas e se dispersando na superfície, as únicas ondas em um mar calmo como dez gerações de pescadores não viram.
Mais do que isso, era também a fonte da horrorosa luminosidade esverdeada que percebêramos durante a noite. Estivéramos navegando sobre seu corpo morto, um corpo cujas dimensões poderiam apenas ser pressentidas. Poderia ter engolido o barco inteiro se estivesse vivo. A humanidade nunca teve a chance de encontrar, viva ou morta, uma lula gigante. A única coisa que levou os cientistas a inferirem a existência de tal animal foram grandes marcas de sucção em corpos de baleias mortas. Talvez estivéssemos presenciando um passo adiante no desconhecido, um predador de lulas gigantes ou coisa que o valha. Parece uma racionalização simplória, mas foi o pensamento que me impediu de enlouquecer definitivamente. Mesmo assim, eu duvido de sua veracidade. Talvez o ajudante do cozinheiro estivesse certo, no fim das contas. Mas o que me fez perder a razão e passar os seis meses na casa para doentes mentais, e o que levou o capitão a afundar o Esperança pelas próprias mãos próximo ao Farol de Santa Marta, em Santa Catarina, no Brasil, foi outra coisa. Foi a monstruosidade que alcançou o cadáver sob nosso barco e o arrastou para as profundezas, devorando-o.
Suas dimensões deveriam ser... não, não posso continuar. Pelo bem da pouca sanidade que me resta, preciso encerrar este relato aqui.

3 comentários:

Anônimo disse...

UAU... Lovecraft na veia!
São oze e meia da noite, minha esposa está dormindo e eu acabei de ler o Relato do Antigo Marinheiro.
Acho que vou para debaixo das cobertas pensar em coisas boas e belas para tentar ter bons
sonhos 8(
...
Lendo teu conto, não sei porque (ok..sei sim, o clima) me lembrei do conto "Os salgueiros" de Algernon Blackwood.
Dê uma olhadinha aqui: http://br.geocities.com/de3103/ebo.htm
No rodapé tem o link para o arquivo zipado.

Abraço, Mainardi

InVinoVeritas disse...

Sim... o conto que o Lovecraft achava o mais perfeito conto de horror, né? Pelo menos comentou isso no seu ensaio.
Eu tenho no micro. É muito bom.
;)
(Sua mulher não odeia quando cÊ vai deitar mais tarde que ela? A minha abomina. Fazer o quê? A minha senhôura chega, toma banho e deita pra assistir a novela... não dá pra ficar deitando tanto tempo, especialmente porque as coisas novas, que eu não li, tão tudo no computador... e eu não assisto a novela. Ou melhor, sou um "noveleiro passivo"...)
Eis que divago.

Anônimo disse...

Mesmo sem olhar muito para a tv, sabemos toda a trama da novela das oito!!! hohoho
É aquele lance de tentar administrar a coisa:
Ficar um tantinho sentado lá do ladinho dela, dar uma fuçada no computa, esparramar toda a tralha de desenho para ir mexendo no "Arcano". E por vezes ouvindo:
- Outra cerveja ????
- Dúh!!!