O Relato do Antigo Marinheiro - Parte II
Uma hora antes do dia raiar fomos despertados por fortes ruídos de água e batidas contra o casco de estibordo, além de uma súbita intensificação no cheiro que nos deixava nervosos e assustadiços. Subimos até o convés, onde um vigia senegalês, pálido e tremendo como uma vara verde, nos esperava com a nova:
- Há mais deles – disse o homem, olhando em nossos olhos com intensidade – e o estão comendo.
Quando olhamos pela borda, o espetáculo dantesco nos tirou o fôlego: dezenas de criaturas semelhantes à que havíamos trazido a bordo no dia anterior estavam próximas do casco, devorando o companheiro morto. As mandíbulas projetavam-se da cabeça, tornando-os parecidos com vermes gigantescos cobertos de dentes, e, quando se fechavam, arrastavam tudo na área de suas mordidas. Se moviam com uma velocidade espantosa, e o sangue fedorento do horror em decomposição na água levou-os a um frenesi de destruição e canibalismo. Arrancavam lascas do casco em seus ataques cegos, e o cheiro peculiar de seu sangue, agora onipresente, era insuportável. Mas o que nos fez recuar não foi o cheiro nem a visão daquele banquete obsceno, nem foi o receio de que eles viessem a perfurar o casco – pois este era grosso e resistente. Foram os gritos.
Aquilo era tão distinto de nossas experiências anteriores que saímos lentamente da borda, recuando, como se tivéssemos receio de das as costas aos horrores que se devoravam uns aos outros na água, negra de sangue atípico. Peixes não gritam. Não possuem gargantas para isso, não têm cordas vocais preparadas para emitir sons a céu aberto. Mesmo assim os ouvíamos. Alguns pareciam urros, outros esgares. Alguns até pareciam provir de uma garganta humana, e isso era quando um deles se feria na selvagem luta que travavam. Aquilo durou uma eternidade. Um garoto que costumava auxiliar o cozinheiro perdeu os sentidos perto da amurada, e teve de ser segurado pela blusa rota para não cair na água, em direção à garganta dos horrores. Alguns correram na direção dos arpões, outros de seus rosários. A maioria de nós, entretanto, pôde apenas se quedar de boca aberta, como testemunha do fenômeno. Pelo meio da manhã as águas se aquietaram, e a última das criaturas voltou à escuridão, deixando nas águas o miasma de sua presença. O cheiro era tão forte que quase ninguém comeu sua ração de bolachas e carne. O sumo de limão, ração obrigatória, parecia ter apodrecido, deixando sua presença ácida em nossos estômagos.
Às duas da tarde nosso capitão enlouqueceu. Saiu ao convés gritando que tudo aquilo era obra do demônio e que era melhor que esquecêssemos qualquer esperança. Num desvario, pôs-se a cortar os cordames que prendiam as velas. Parecia julgar ser inútil esperar qualquer vento ou maré para nos tirar daquela situação. Foram necessários dois homens para contê-lo, e o médico de bordo administrou-lhe um calmante forte, que o prostrou na cama. Depois de oito horas de sono ele voltou ao convés, envergonhado, e pediu desculpas à tripulação, prometendo-nos tirar daquele aperto, fosse como fosse. Como se em retribuição às suas palavras de encorajamento constrangido, sentimos um movimento tênue, mas perceptível, nas ondas. Parecia que uma corrente marítima enfim nos levaria para algum lugar. Ninguém argumentou a impossibilidade disso (mas todos sabíamos que correntes marítimas não nascem do nada), preferindo sorrir com nervosismo, aliviados com alguma movimentação depois dos doze dias infernais no centro da calmaria, mas a esperança era em vão. O movimento, embora perceptível, não carregou o barco mais que uma dúzia de metros, e não havia vento nenhum a impelir o barco. O capitão deixou cair os braços ao longo do corpo, derrotado, e voltou para a sua cabine. Era o começo da noite em que o horror nos atingiu.
Não havia luar, e as estrelas estavam cobertas por uma bruma espectral. Por volta das onze um odor terrível começou a se fazer sentir. Não era o mesmo que exalavam as criaturas que tínhamos visto anteriormente, mas sim algo mais insidioso, repulsivo, que falava direto a nossos nervos. Gradualmente, as brumas se tornaram mais e mais visíveis, tanto que ao cabo de trinta minutos tínhamos certeza de que havia alguma fonte de luz iluminando-a. Jonas, o cozinheiro, um haitiano católico e inteligente, comentou algo sobre algas fosforescentes na água do mar. O francês (não recordo o nome, exceto que parecia com LaBrette, mas não exatamente isso) achava que era a luz da lua sobre a névoa. O menino que quase caíra sobre o banquete das criaturas aventurou-se a dizer que só podia ser o Diabo rondando a nau. Bem, isso explicava o mau cheiro. Foi Lafayette, um marinheiro velho com barba grisalha, que nos chamou a atenção para a peculiar clareza da água. Era límpida e, ainda assim, parecia emitir uma leve fosforescência de cor verde, que nos permitia distinguir os contornos irregulares do fundo do oceano, sabe-se lá quanto abaixo de nós. Em pouco tempo fazíamos uma fila ao longo do navio, todos olhando o curioso fenômeno. O cheiro estava mais forte. Eram passadas as duas da manhã.
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