O Relato do Antigo Marinheiro - Parte I
Certa vez uma turma de estudantes foi até o Farol de Santa Marta, em Santa Catarina, no inverno (brrr!) para tirar fotos. E, óbvio, um bando de dementes foi surfar. Mas isso não vem ao caso. O caso é que, na ida, a tal excursão deparou com um navio afundado, encalhado em águas rasas. Poético? Não necessariamente. Acontece que o nome do navio era Esperança (é o bruto aí em cima, em pessoa).
Daí eu pensei em escrever uma história de um "marinheiro que perde as graças do mar". Um capitão que se desilude com o mar por algum motivo, e acaba encalhando propositalmente seu navio. Se você achou a história meio doce e melancólica, embora bucólica demais, a minha reação foi ser impedido de tentar o suicídio por causa de um coma diabético e afogado em bucolicidade, o que quer que isso queira dizer.
Saiu foi um conto de terror, totalmente inspirado em Lovecraft (o título saiu do Iron Maiden, mesmo, não do clássico). Vou dividi-lo em três partes porque é melhor que colar um bloco enorme de texto que pode nem interessar você. Então tá, aí vai. Tomara que você goste.
O Relato do Antigo Marinheiro
Foi no terceiro dia sem vento algum nem qualquer corrente que pudesse imprimir movimento ao barco que o capitão reuniu os marinheiros no convés. Os homens trabalhavam diligentemente mantendo limpo o convés, checando os cordames, se mantendo ocupados com qualquer coisa que pudessem encontrar. O ócio é um grande perigo no mar; ele corrói a alma dos marinheiros e os impulsiona a atividades menos construtivas. O álcool e as brigas começavam a proliferar no navio. Na noite anterior houve uma luta entre dois dos marinheiros hindus por causa de um jogo de dados. Eles amanheceram com as marcas roxas da disciplina. O assunto não era, ao contrário da expectativa geral, o conflito, e sim os suprimentos. Teríamos de racionar a comida, como medida preventiva, caso a calmaria, completamente inédita até então naquelas águas, durasse muito tempo. Especialmente o grogue, pois ele não queria mais brigas na esperança, completou. E deveríamos pescar o que pudéssemos, já que peixe fresco é melhor do que carne enlatada e bolachas. Poderíamos temperá-lo com o suco de limão que era ração obrigatória no barco, por causa do escorbuto.
Assim, nos lançamos às linhas de pesca e começamos a esperar que o vento soprasse ou alguma fortuna nos alcançasse na forma de vento ou corrente, para podermos escapar para águas mais agitadas, e retomar nosso itinerário. Não houve novidade alguma nos quatro dias seguintes. No sétimo dia de calmaria um marinheiro puxou um monstro para o convés do barco. Ele começou gritando para que o ajudássemos a puxar a linha, e sete homens mal agüentavam o cabo, queimando suas mãos na linha de pesca, grossa e feita com cânhamo alcatroado. Ao cabo de três horas inteiras de luta, eles foram rendidos por mais sete homens, a não ser pelo marinheiro moçambicano que pegou o peixe, pois este quis ficar para contar aos filhos seu triunfo sobre o que – era consenso no convés – só poderia ser um marlim ou talvez um tubarão branco dos grandes. Em outras quatro horas a criatura finalmente assomou à superfície. Como descrevê-la? Era um tubarão em seu formato, mas abissalmente branco e totalmente destituído de olhos. Em sua boca tinha sete fileiras de dentes, que se projetavam de forma grotesca enquanto ele retesava a boca, chegando a cobrir metade da região onde a cabeça de um tubarão costumava ficar. No lugar dos olhos tinha apenas longos fios, como bigodes, sabe-se lá que estranho sentido os usaria.
Ficamos em círculo em torno da aberração que estertorava no convés. Tinha quase nove metros, e o moçambicano tivera obviamente muita sorte em não ter sido arrastado por um puxão casual do animal até conseguir enroscar sua linha em torno do mastro principal, onde sete homens lutaram durante horas para subjugá-lo. Havíamo-nos lançado sobre ele com arpões, mas mesmo o mais corajoso de nós se deteve à visão daqueles dentes inesperados que arranhavam o convés fazendo fundas marcas na madeira, pois até o momento em que os dentes afiados cobriram a cabeça do ser acreditávamos que se tratava de uma baleia anã, uma beluga atacada por tubarões a sobreviver deformada no mar. Mas os dentes enormes como cimitarras roubaram-nos a fala dos lábios, e ninguém teve coragem de se aproximar do monstro. Em menos de um minuto estava morto. Em pouco mais do que isso exalava um cheiro fortíssimo no convés, parecendo ter apodrecido diante de nossos olhos. O capitão propôs-nos guardá-lo para ser estudado por doutores em terra, já que nenhum de nós havia visto coisa semelhante antes, mas nos recusamos terminantemente a dividir o navio com aquilo – o que quer que fosse – e lançamos os restos ao mar. Antes não o tivéssemos feito. A carcaça ficou boiando próxima ao Esperança, cheirando cada vez pior. Os tubarões não se aproximavam dela, o que fez mais de um marinheiro experimentado se persignar em silêncio. Não conseguimos pescar mais nenhum peixe depois que puxamos a criatura, e à noite os marinheiros sussurravam supersticiosos. Os sussurros apenas aumentaram quando constatamos que o cadáver malcheiroso parecia brilhar tenuamente na escuridão da noite sem luar.
Talvez fosse o cheiro que nos deixasse nervosos, talvez houvesse alguma razão para temer. Acredito que há odores que falam diretamente a nossos instintos, algo que trazemos conosco desde antes de andar sobre dois pés. Um professor uma vez me contou que aprendemos a considerar certos cheiros como ruins porque o que estava associado com esse cheiro poderia nos ser nocivo. Por exemplo, não gostamos do cheiro de bosta porque está cheia de bactérias, e gostamos menos do cheiro de merda humana, porque usávamos isso para marcar nosso território quando ainda éramos macacos. O cheiro de um grande predador nos parece insuportável porque – bem, um grande predador significa perigo. Mas um odor que lança toda uma tripulação em horror absoluto... o que significaria? Mas estou me adiantando.
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