sexta-feira, julho 27, 2007

Falcon

São seis horas da manhã. Faltam só duas. Eu já tentei de tudo para não dormir. Agora estou enfiando as unhas nas palmas das mãos. Já sai sangue, mas isso não pára o sono. E eu não posso dormir, porque sei que não vou acordar. Em vez disso, repasso os acontecimentos em minha cabeça.

Noite de natal. Eu e meus primos fazendo o possível para tornar a vida de todos insuportável com pistolas de água e estalinhos. Até que chegou a hora de abrir os presentes. Eu já sabia o que vinha pela frente: meu pai tinha me prometido o boneco do Falcon, defensor da Justiça, protetor dos Inocentes, a última palavra em boneco de ação. Se você está rindo é porque não viu as propagandas da época. Davam a impressão de que o Falcon vinha junto com um universo paralelo inteiro, cheio de brinquedos bélicos. Educativo ao extremo.

Então abri a caixa do Paladino da Justiça. Era um ruivo barbudo com um colante cinza. Calças camufladas e botinas, mais um cinto cheio de troços que eu não pescava muito, não. Brinquei com o boneco até cansar e ficar quase caindo de sono. Meu primo ficava me incomodando, jogando água no boneco, e estalinhos que ele dizia serem granadas. Falcon terminou a noite no lugar de honra de minha prateleira de brinquedos, uma clara exceção à regra implícita (para mim) de que brinquedos não precisavam ser guardados, simplesmente se materializavam em seus lugares no outro dia.

Levantei no outro dia com uma guerra na cabeça: eu era alto, barbudo e ruivo, e enfrentava o Mal. Me vesti, peguei o boneco e saí zanzando pela casa, na direção vaga de um provável café da manhã. Quando eu entrei na cozinha, meu primo olhou para mim e saiu, apavorado. Não importava o quanto eu tentasse perguntar pra ele o que é que tinha acontecido, ele não me deixava chegar perto. Ficou a impressão de que eu tinha batido nele. O que era estranho, porque o primo em questão tinha mais ou menos a aparência e consistência de uma parede de tijolos, sendo dois anos mais velho do que eu. Na época isso fazia toda a diferença.

Rápido eu esqueci do que tinha acontecido, um mundo de aventuras me esperava. Metaforicamente. Fiquei no galinheiro, brincando com minha coleção de bonecos (até uma boneca de pano velha, jogada fora por minha irmã, servia como antagonista para o Falcon. Precisava conseguir uns inimigos mais feios). Teve uma hora que uma galinha que recém tinha descascado uma ninhada de doze pintinhos me atacou por estar perto demais, o que levou a tropa Falcon a uma retirada estratégica até perto de uma sanga.

Nada muito ousado, podia ver a chácara (onde a família havia se reunido para passar o feriado) de longe. Aí aconteceu a desgraça. Um filhote de ovelheiro louco pra brincar pegou o Falcon e saiu correndo. Em minha ânsia para recuperar o boneco acabei puxando da boca do bicho – que ficou ressentido e saiu ganindo. Junto com um braço do boneco. Chorei como se tivesse perdido a minha alma. Depois coloquei um braço de arame e fiz um ciborgue. Apesar dos revezes, não é bonita a forma como a vida continua?

Os passos no quarto. Abro os olhos rápido. Tudo está quieto. Dormitei. Foi como nas outras noites: os sonhos e a impressão de ouvir movimento no quarto. Pequenos pés batendo contra a madeira do assoalho. Mas não posso, não posso dormir. Nem cochilar. Ou o Inferno virá aqui sob a forma que escolheu. Falta só uma hora e meia. A diferença entre a vida e a morte. Os ponteiros do relógio de parede parecem hesitar em se mover. “Tente”, eu me digo, “se concentrar em lembrar. Isso espantará o sono.”

No outro dia acordei cansado. Não havia dormido direito. Os sonhos me incomodavam. Quer dizer, sonhar com armas atômicas, guerras contra monstros, tudo bem. Mas o sangue me chocou. Nunca tinha sonhado assim antes. Quando cheguei na cozinha meu primo saiu. Depois do café voltei para o quarto e vi toda a minha coleção de bonecos despedaçada. Sabia que era coisa do meu primo. Mas não sabia o que eu tinha feito pra ele. Cê já teve um coração partido? Felizmente ele não tinha tocado no Falcon, ou eu teria dado um jeito de cagar nos tênis dele. Ah, teria. Passei o dia arrumando os bonecos (foi até divertido, mas isso eu não queria confessar nem pra mim mesmo) e fazendo as pazes com o filhote de cachorro. Uma das tardes gostosas de verão, ideais pra vadiar.

De tarde meu pai me chamou e me deu uma surra. Quando perguntei por quê ele me levou ao galinheiro e mostrou a galinha que havia descascado no ninho, como se quisesse descascar de novo a ninhada. Ela estava sentada em doze cabeças de pintinhos falecidos.

Esta manhã o cachorrinho sumiu.

Só resto eu. O último inimigo. E é tão pouco tempo! Uma hora, não mais. Uma hora acordado. Todos os outros se foram: meu primo foi embora com a família. Os brinquedos que usei como vilões foram despedaçados. A galinha foi punida. O cachorrinho. Sabe deus o que aconteceu com ele. E na janta minha mãe reclamou que estava faltando uma faca na cozinha. Não sei onde ele a escondeu. Seu olhinhos – os horríveis olhos pintados – me seguem cada vez que eu me mexo. Eu entendo que ele precisa não ser visto. E entendo seu propósito. Amanhã vou queimá-lo. Se... conseguir... manter... os... olhos... abertos.

Nenhum comentário: