quinta-feira, julho 26, 2007

O Grande Dia

Com precisão, as coisas se sucedem: dez bilhões de pulsos de um átomo de césio se aglomeram para formar um segundo; sessenta destes criam um minuto; minutos crescem em horas. Vivemos aturdidos, amarrados por conceitos criados à base de césio e abstrações[1]. Jornada de trabalho, chaves do carro, programação de TV a cabo, os jornais do dia. O homem é uma ilha cercada de tempo por todos os lados. Que o tempo não permeia, por isso sente-se afundar cronologicamente.

E é necessário um relatório ao fim da tarde! Possibilidades, gráficos, projeções. Uma incursão em um mundo futuro, coisa de profetas matemáticos - a religião da vez: os povos americanos previram eclipses; Pitágoras o tamanho da Hipotenusa; Arquimedes ansiava um ponto de apoio para deslocar a Terra. Cometa Halley, deslocando-se em um ciclo perfeito através do cosmo. O Grande Relógio Universal contando os segundos através de átomos de césio. As linhas da História no pescoço do enforcado. Hoje, o tempo me sufoca. São trezentos bilhões vezes sessenta pulsos até o fim do expediente. Entenda-se isso! Trinta minutos para uma projeção de lucros para o ano que vem, em uma pequena firma. Trabalho como técnico em contabilidade de uma empresa no centro. Sou um dos adivinhos.

Alucino um enorme pássaro cinzento, desventrado e sangrando sobre minha escrivaninha. Eu, adivinho, leio na posição de seus intestinos e nas nódoas coaguladas relances do futuro. Mas não consigo tirar os olhos do fígado (sua delicadeza, sua fragilidade). Atrás de mim, dois soldados com lanças que terminam em enormes ponteiros me obrigam a ser diligente, a voltar aos cálculos. E o devaneio estoura como bolha de sabão: é preciso terminar o relatório. Luto com ele, debato-me entre suas linhas precisas. A escala e a percentagem; tão diferentes e tão iguais a mim, ser simétrico. Bípede implume, sem pena, sem dó nem piedade. Nem de mim mesmo. Penso no cheiro dos croissants da padaria da esquina, no gosto em pó, passado e requentado do café-de-todo-dia, que tomarei à guisa de janta, no caminho para casa. Lá, não há o jornal do dia, nem chinelos. Só minha existência e meus projetos. Tudo o que me é importante fechado a chave, em um apartamento de cinco cômodos – em um mundo particular, The Twilight Zone. A minha dimensão. No entanto, me obrigo a trabalhar. Ponto Final.

Ponto final. É a melhor parte. Ctrl+P, Enter, e a impressora engole uma folha, para regurgitá-la permeada pelo trabalho de uma tarde. Faltam dez minutos para o encerramento do expediente. A hora H. O dia D. Sexta-feira. É o meu dia. Hoje me jogo do prédio em construção. E a ansiedade me corrói como se as agulhas da impressora trabalhassem sobre a parede de meus intestinos. Não é uma decisão fácil: jogar-se assim, de cabeça, em uma resolução que – acredita-se – seja a única capaz de libertar uma pessoa das meadas do cotidiano. Das amarras invisíveis que a restringem. É uma questão de prioridades, apenas isto. Pessoas à minha volta se afogam (terceira página agora. Só mais duas.) em suas rotinas. Trinta dias ao mês, oito horas ao dia; serões, stresses, sono interrompido. O intervalo do almoço, o cafezinho. Desejam pouco: um fim-de-semana na praia, uma viagem por ano, situação financeira confortável. Eu anseio por liberdade. Mas é coisa que não se contabiliza, não se materializa. (uma) Liberdade não deve ser buscada em firmas de contabilidade. Então, resolvi ser livre do meu jeito, muito além do que qualquer um deles pode imaginar.

(pronto) Levanto-me e caminho até a sala do diretor, que está ao telefone. Conversa com a mulher, e a voz eletromagnética corre pelo fio, dizendo coisas de casa. Só que a casa está distante. A mulher é distante. Talvez se ele se enfrestasse pelo fio, se beijasse familiarmente o aparelho, se apertasse um botão e a mulher recebesse automaticamente uma palmadinha carinhosa nas nádegas, então estivessem conversando. Mas, ao invés, ele é lembrado eletromagneticamente da lista de compras para a janta – comida congelada – , depois desfrutarão uma familiaridade televisiva e, num ímpeto de paixão, ele mandará um orgasmo por e-mail para a mulher, que suspirará alegremente e fingirá prazer. Outros, pelo escritório inteiro, combinarão encontros de névoa, telefonarão uns aos outros no final de semana, mandarão mensagens engraçadinhas e pedirão desculpas pela falta. Próximos e distantes como paralelas que, distando dois centímetros, no infinito é que se encontram.

Volto para minha escrivaninha, o relógio de parede ribombando em meus tímpanos: um tic, um silêncio infinito e um tac. Vivemos entre recortes de tempo, passamos um pelo outro, atravessamo-nos, em existências etéreas. E o Deus-relógio ri[2]. Ele solta sua gargalhada altissonante, em forma de campainha, e o expediente acaba. O tempo regulamentar da jornada de trabalho passou – para onde foi? Retiro meu paletó da guarda da cadeira, e deixo o bilhete amarelecido sobre o teclado do computador, com a parte escrita para baixo.

Me despeço dos colegas
Afirmando em um versinho
Que não vou mais retornar
A ambiente tão mesquinho.


Onde se enterram sonhos. As folhas de grama de um campo imaginário se amassam sob meus pés. Queria trabalhar como empinador de pipas. Fui bom nisso (um dia). O sorriso vem do ato de deixar o versinho no teclado. Humor foi outra coisa que sempre me faltou, aqui. Talvez quem encontre o papel na segunda-feira sorria. Mas já estarei longe, voando sobre mares nunca d’antes navegados. Olhando com curiosidade o Grande Umbigo Cósmico. Não me despeço de ninguém, ao sair.

O botão do elevador acende a espera, e oprime. A porta se abre com alívio. Entro e fico estático; ainda assim, me movo, descendente. Galileu tinha razão[3]. Ganho o corredor, cruzo a porta e o mundo se abre. Até a parada – quantos passos? Passo a mão na testa porejante, enquanto caminho. Me encosto na guarda, e espero o ônibus. Quinze minutos (nervoso, querendo vomitar o coração). Chega quase vazio, leve e rápido. Me acomodo em um banco, tensionando a perna que insiste em balançar. Quando acho que transcorreu tempo suficiente, levanto, e fico esperando o meu ponto chegar até o ônibus. Puxo a cordinha com antecipação exagerada, pelo medo incongruente de o motorista se negar a parar. Hoje, o Grande Dia. O freio a ar assobia para mim; suspiro de volta para o freio, familiarmente, e desço os degraus. Na padaria, como dois croissants com café queimado demais, com tempo demais na cafeteira – uma espera silenciosa demais, sentida mesmo pelos objetos à minha volta. Tudo anseia pelo fim. Agradeço a seu Egídio, peço que ponha em minha conta e vou até o prédio do lado (o meu).

Cumprimento o zelador com um aceno animado, e subo pulando os dois lances de degraus que conduzem – diretamente, na frente da escadaria – ao meu apartamento. Marcado com um 21 pintado com esmero e tinta verde-escura na porta. Coincidência: fazem 21 anos que moro aqui, 21 anos desde os meus 21 anos. Chegando ao dobro da cifra, orgulho o sentimento de não ter deixado muita coisa para trás – ideais, rebeldia.

Há uma quinta dimensão além desta, que é conhecida pelos homens. É uma dimensão vasta como o espaço e atemporal como infinita... é o meio termo entre a luz e as sombras, entre ciência e superstição, e está entre o poço do medo humano e o limite de sua sabedoria. Esta á a dimensão da imaginação, que nós chamamos A Zona do Crepúsculo... Além da Imaginação. Eu não acho realmente que exista alguma coisa além da possibilidade e do alcance da imaginação humana. Mas eu gostava daquele seriado. Por isso apelidei meu apartamento de Twilight Zone[4]: quando giro a chave, um universo particular se descortina.

E, no fundo, não são mais que fragmentos: a caixa de pizza no corredor, a pilha de latinhas de cerveja no saco plástico de supermercado, esperando a minha disposição de levar o lixo para fora. Os poucos móveis, o colchão num canto do quarto, entre livros e garrafas plásticas e vazias de refrigerante. O quartinho dos fundos, o dos projetos de vida e clausura. Tudo conta a minha história. As horas trabalhando no design das asas. Juntando cera de abelhas e penas de espanadores, ontem terminei meu trabalho. Hoje me jogo do prédio em construção, e ganho o infinito – devendo apenas tomar cuidado de não chegar muito próximo ao Sol. Afinal, não há liberdade completa. Nem mesmo nos sonhos mais insanos.

[1] Um segundo foi padronizado como sendo 10.000.000.000 de pulsações de um átomo de césio. Essa tecnologia tende a ser substituída pela medição por átomos de mercúrio, que pulsam 100.000 vezes mais rápido que os de césio. Os relógios atômicos são usados para realizar cálculos extremamente precisos, como os das órbitas dos satélites. Ou as vidas das pessoas. É provável que, no céu, utilizem o mesmo sistema de medição para o tempo perdido pelos homens.
[2] Os primeiros colonizadores da América do norte converteram índios embasando sua religião em um relógio-cuco. Diziam aos selvagens que o relógio era Deus, e eles se maravilhavam ao ver uma coisa tão estranha agir sozinha. As cerimônias consistiam em esperar pacientemente até que Deus saísse. Deus era um cuco, que mais tarde foi utilizado como metáfora para loucura, talvez representando a angústia de viver cozendo retalhos de existência.
[3] Galileu Galilei, com a construção da Luneta Astronômica, publicou em 1612, os livros O Discurso sobre as Coisas que estão sobre a Água e História e Demonstrações sobre as Manchas Solares, defendendo as teorias de Copérnico, que defendia o sistema heliocêntrico (a Terra se move em torno do Sol), o que ia contra as crenças da época. Foi condenado pela inquisição e teve que negar tudo no tribunal. Ao sair do tribunal, disse uma frase célebre: "Epur si Muove!" (e no entanto ela se move). Ela, a Terra. Morreu cego e condenado pela igreja, longe do convívio público. O processo só foi revisto 341 anos após a sua morte. Um sistema heliocêntrico havia já sido proposto por por Aristarco de Samos pelo ano de 200 a.C. Contudo, esta idéia não sobreviveu muito tempo debaixo do peso da influência de Aristóteles e do "senso comum": as idéias da maioria se tornaram pouco mais que uma nota de pé de página sobre os erros e o egocentrismo dos homens que constroem a história com suas idéias.
[4] The Twilight Zone: seriado americano apresentado no Brasil sob o título de Além da Imaginação.

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