segunda-feira, julho 16, 2007

A Armadilha


A madrugada andava alta, prometendo um novo dia, a boate já havia acabado e a rua estava mais fria e deserta do que eu lembrava já ter visto. Eu estava pensando com meus botões – depois que usaram pela primeira vez essa expressão, todo botão virou filósofo – que os caras feios deveriam ter algo, uma espécie de direito de nascença a algumas coisas da vida que normalmente estão ao alcance só dos bonitões. Quer dizer, se você é bonito, é fácil. Tem as meninas mais bonitas da escola caindo por você, conhece gente, as pessoas andam tão encantadas com você que não é necessária timidez, o futuro sogro te oferece um empregão, nem bem cê entra na faculdade, essas coisas.

O feio não, o feio é reduzido desde cedo a essa abjeção moral, molusco humano, essa criatura sem jeito, que desfila sua fealdade pelas ruas como se pedisse desculpas, que nunca realizou suas fantasias eróticas e sublimou tudo em livros estranhos. Já que se é feio, deve-se no mínimo afetar inteligência. O feio também anda desarrumado. E bem vestir para embelezar o quê? Feiúra não tem remédio, só plástica, mas cadê o dinheiro para fazer? Não conseguiu o emprego porque se portou na entrevista como um caramujo, que entra na casca qualquer sinal externo de predação. Feio tem é que se consolar com ser feio, e pronto. Assume as roupas remendadas, os óculos quebrados remendados com um pedaço de esparadrapo e as leituras estranhas como estilo, e viva-se com isso. Por essas e outras eu digo: deveria existir uma espécie de compensação por ser feio. Um emprego, mesmo medíocre, reservado, o direito de, uma vez por ano, se trancar num quarto com a menina mais bonita do colégio e fazer o que quisesse com ela, um adicional no salário pelo aleijão estético, essas coisas. Pensando nisso eu ia, e a noite e o silêncio crescendo tanto à minha volta que só não me oprimiam porque – eu sabia – esse crescimento todo ia explodir, desovar no dia que perigava nascer.

Aí eu vi o Diabo. Cachorrão preto, os olhos vermelhos. Parado na minha frente, na sombra de um beco, me encarando. Num olhar do bicho tudo o que é ruim na minha vida começou a me assaltar. Desde o momento em que quebrei um lápis na cabeça de um colega até os dias atuais. Engoli em seco com uma vontade tamanha que nem sei como fiquei com os dentes de trás. Aí o bicho sorriu. Ce já viu cachorro rindo? Pois é. Nem eu. Mas aquele não era um cachorro, era o Diabo, e sorria para mim. Aquele sorriso zombeteiro, meio cúmplice, que diz “eu conheço você” em cada dente à mostra. Eu puxei um cigarro, acendi e disse:

- Tá bom. Cê me conhece. E daí?

Ele colocou a cabeça de lado, uma orelha erguida.

- Eu também me conheço. Não tem nada de especial nisso. Ah. Tá. Entendi. Esse é um dos lances de me assustar para me deixar desesperado, né?

Silêncio.

- Não? Então deve ser pra me fazer recordar que mau menino eu fui, e chegar à conclusão de que não importa o que eu faça, vou parar no inferno. É isso?

O bicho botou a língua pra fora e começou a resfolegar.

- Ah. O.K. Bom, não deu muito certo, né? Quer dizer, não trouxe nada novo. Eu não entendo essa disputa que cê tem com o Cara de Cima. Nem vejo muito lucro em tentar angariar almas. Sabe por quê? Por que, não importa o que cê faça, ele tem o jogo todo na mão dele.

Rosnado. Bom.

- Onipotente e onisciente, né? Sabe o que vai ser antes de ser, e pode mudar o que quiser. Ce não fica chateado em ser apenas mais uma peça no jogo de xadrez cósmico? Mas é uma realidade inescapável, não?

Dois passos em minha direção.

- Fala sério. Cê deve se achar um verdadeiro otário quando descansa a cabeça no travesseiro, ou estalagmite, o que for. Toda essa rebeldia, essa guerra e no final, acontece o quê? Ce não tem chance desde o começo da história! No final das contas cê vai voltar pro papai com o rabinho abanando, né?

Postura de ataque. Começou a caminhar devagarinho para mim, sempre rosnando.

- Sabe o que a gente diz por aqui? “O filho pródigo à casa torna.” Quer dizer que o cara que sai mais cedo de casa acaba voltando, porque não sabe o suficiente para não se dar mal. Se bem que no seu caso podia ser “o filho pródigo o caldo entorna”, porque...

Ele pulou. No mesmo instante, o sol nascendo tocou o corpo preto e o Diabo, com um grito de ódio, se esfumaçou no meio do salto, a centímetros do meu pescoço. Deu tempo. Pelo menos, deu tempo. Fui pra casa feliz da vida, assobiando como se tivesse visto passarinho verde. Não é sempre que o Diabo cai na sua que nem um patinho.

6 comentários:

Blognâmbulo disse...

"Uma noite encontrei o Diabo no último trem de volta pra casa, parecia que eramos os únicos no vagão. Conversamos bastante... é sério! Ele até me chamou de pai"

Bom conto Invino, me lembrou o conto onde citaria a frase acima.

Abs

InVinoVeritas disse...

Ué, Blog, que conto é esse?
Agora me deixou curioso...

InVinoVeritas disse...

Falando nisso (não tem nada a ver), cê já deu uma olhada nos projetos? Que achou da novidade?

Anônimo disse...

Rapaz... Agora fiquei confuso. Eu nem ao menos sei o que é FARRA asfdh

Seria meu alzheimer atacando? Mas enfim, acho que a explicação mais plausível é que você estivesse falando com o junpark, que também é colaborador lá do Fatos Insólitos...

Me esclareça isso aí por favor. Agora até fiquei curioso afsghj

Anônimo disse...

Ah sim, o comment acima é em resposta aos comentários lá do post sobre otacos.

Abração

Anônimo disse...

Pow Invino, legal, gostei!!

Olha eu aki em mais uma de minhas noites de insonia, saindo do F.A.R.R.A e visitando seu blog...

Passarei mais vezes por aki.

^^