terça-feira, julho 17, 2007

O Homúnculo

A idéia veio num sonho:

Uma vida por uma vida
Um óvulo para matéria,
A semente para a forma,
Ferva em sangue por dois dias,
No terceiro, o que ali estiver será seu escravo.
Alimente-o com seu sangue, e fará tudo o que desejares.


Simples, assim. Quase uma receita de pão. Claro que o sonho me impressionou, senão nem mencionava ele aqui: só faltaram as três bruxas jogando nojeiras em um caldeirão e rindo para mim.


Resolvi fazer. Sei lá. Tenho um pé na cozinha. Adoro receitas novas. E, depois, tinha parado de fumar e começava a engordar que nem um porco, precisava de alguma coisa para me distrair ou não conseguiria manter minhas mãos desocupadas longe da geladeira por muito tempo. E eu sei que quem escreveu que “a mente desocupada é o jardim do Diabo” não ponderou sobre os efeitos maléficos de uma dieta forçada.


Então, segui a receita. Uma vida por uma vida. Resolvi isso com uma lagartixa preguiçosa. Um ovo de galinha cuidou da parte da matéria. A minha semente... bom, consegui do jeito normal – foi até gostoso. Já o sangue... pensei em comprar num açougue, mas decidi que, se não pudesse ser feito com caldo de carne, não valeria o esforço. Não queria o açougueiro me olhando estranho.


No primeiro dia a lagartixa dissolveu inteira. Eu não sabia que ossos dissolviam. Aquilo seguiu fervendo, enquanto eu acrescentava mais e mais caldo de carne, até que a condensação deixasse uma crosta do lado de dentro da panela. Uma sujeirada. O cheiro era gostoso, mas – eu, hein? – nem pensei em provar. O ovo, que deveria ter rebentado nos primeiros quinze minutos, estava lá, incólume, olhando pra mim. De resto, estava parecido com uma sopa daquelas que se come em restaurantes caros.


Foram duas noites levantando de duas em duas horas pra ver a mistura e colocar mais caldo de carne (desses de caixinha, nada muito caro). No terceiro dia o ovo rebentou, e aquilo saiu de dentro.


Parecia um feto humano, mas era muito menor, do tamanho de uma barata, completamente vermelho e me olhava com os olhinhos verdes. Guardei num vidro. Naquela noite, antes de dormir, cortei meu dedo e dei de mamar meu sangue para a coisa. Bebeu uns golinhos, arrotou, satisfeito, depois olhou para mim e falou:


- O que você quer?


E essa, agora? Não tinha pensado nisso! As coisas mais loucas rolaram na minha mente, desde “dá um abraço no papai”, até “uma cervejinha e não se fala mais nisso”. Só que havia algo de desconfortável na maneira da coisa me olhar, então eu pedi simplesmente:


- Me conta uma história.


E ele me contou sobre uma civilização antiga, os guardiões secretos da História, ainda vivos, registrando fatos passados em cavernas, escondidos dos olhos do Homem. Foi legal. Sonhei com aquilo depois.


Essa mesma cena começou a acontecer todos os dias. Através da coisa do vidro eu fiquei sabendo por que os gatos gritam que nem crianças na noite, fiquei sabendo da existência do Livro, que não tinha nome e que era um compêndio dos ritos das religiões antigas, conseguido através da tortura de seus sacerdotes e enterrado por séculos em algum lugar do Vaticano – até ser roubado -, fiquei sabendo do destino verdadeiro da linhagem de Caim, do paradeiro da lança de Longinus (enterrada junto do cadáver de Hitler, história comprida, você não vai querer saber) e do código secreto para ler os poucos grimoires verdadeiros que – pasmem! – poderiam ser adquiridos pela Internet por uma módica quantia.


Nesse meio tempo a coisa do vidro cresceu, ficou parecido com um homenzinho de pele vermelha e olhos verdes, só que com quinze centímetros de altura. Não precisava de água nem de comida (pelo menos rejeitou mais de uma vez umas bolachinhas recheadas que ofereci), se alimentava exclusivamente de meu sangue e pegou a me chamar de “mestre”. Sendo que eu ainda não tinha mestrado em porcaria nenhuma. E também começou a se exasperar com meus pedidos; insistia em me oferecer ouro, favores, palácios, queria pedidos maiores. E, quando eu novamente pedia uma história, apenas virava a cabeça, evitando meu olhar e comentava:


- O Mestre é sábio.


A razão dessa “sabedoria” eu não sei. Vai ver é algo socrático, “só sei que nada sei, e isso me faz sábio perto dos outros, que não sabem nada e acham que sabem algo”. A lógica disso tudo me escapa. Eu só gostava das histórias. Cheguei a escrever algumas, para não me esquecer. Porque a danada da coisa se negava a repetir uma história que já me tivesse contado.


A minha dieta também deu certo; nas primeiras duas semanas perdi três quilos. Na outra o cinto foi apertado um buraco. E eu estava feliz com a minha nova mascote. Cheguei até a pensar em comprar uma gaiola e ensinar alguns palavrões pro negócio. Claro que não falei a ninguém sobre ele, e escondia a garrafa em cima do guarda-roupas, tirando a coisa dali só para alimentá-lo e ouvir as suas histórias. Eu mencionei que era um “ele”?


O problema é que o meu dedo estava ficando ruim. Não parava de doer, o corte estava sempre aberto. E as minhas roupas estavam ficando mais folgadas do que a perda de peso indicava que deveriam ficar. Uma noite fingi dormir e vi o coisinha se arrastando de sua garrafa, descendo do guarda-roupas (que nem uma aranhona vermelha, coisa feia de se ver) e procurando o meu dedo. Não me mexi. À medida em que ele bebia umas veias inchadas, como enormes sanguessugas vermelhas se formavam por todo o corpo. Ele pareceu crescer dois centímetros aquela noite e, pela manhã, as barras de minhas calças precisavam e um novo ajuste. O terceiro.
Na noite seguinte peguei sua garrafa como de costume – já quase não cabia mais nela – e olhei para ele com atenção. Pela primeira vez notei sua incômoda semelhança comigo. Ele não era assim dias antes. Dei-lhe meu sangue e, na hora que ele me perguntou o que eu queria, respondi simplesmente:


- Vá para o inferno, filhinho.


Ele deu um grito de ódio enquanto desaparecia. Suas feições ficaram muito, muito diferentes e pude ver pela primeira e última vez a verdadeira aparência da coisa que pretendia tomar o meu lugar. E não era bonito. Pra dizer o mínimo.

3 comentários:

Anônimo disse...

E aí Invino, tranquilo?
Então... nunca havia "clicado" no teu banner (ou de qualquer outro dos perfis do F.a.r.r.a).
Devo admitir que sou meio preguisoço nesses lances de viajar pela net.
Mas aí surgiu a curiosidade e visitei teu blog. E li "O Homúnculo".
Pustaquepariu... muito boa.
Ao mesmo tempo que ri de algumas situações, achei bastante perturbadora a narrativa.
Enfim, muito legal... agora é só achar tempo para ler os outros contos.
Um abraço

Mainardi

Anônimo disse...

Ô, valeu, doutor. Obrigado. E pesquisar na net às vezes vale a pena... lembra que eu encontrei a Rapadura Açucarada assim...
;)

Blognâmbulo disse...

Caraleo!! Velho tu é foda.
Muito bom esse conto.