O Facínora
Família é foda. A minha esposa trouxe ele para casa, nem bem havíamos fechado um ano de casados. Achei que ela ia demorar um pouco mais para pôr as manguinhas de fora... Era como um gremlin envelhecido. Enrugado, sem um dente na boca. O andar claudicante, como se estivesse prestes a desabar, levando alguma coisa frágil junto com ele para o chão. Sim, porque mexia em tudo, como se tudo fosse propriedade dele. Se alguma coisa o interessava em minha pilha de revistas, não tinha a mínima delicadeza de pedir minha permissão: simplesmente rasgava o que lhe interessava e ia ruminar em algum canto.
Propus à minha mulher comprar uma dentadura e ela se escandalizou. E eu ali, órfão de esposa, numa carência só. Mas tudo bem. Ou estaria, caso não tivesse de agüentar o cara zanzando pela casa o dia inteiro, mexendo em todas as coisas que não devia. Em pouco tempo, assistir televisão se tornou quase impossível, porque o cara-de-pau foi logo arrebatando o controle remoto, me exilando de minha poltrona, fechando as portas do país para mim, na hora do jornal.
E o pior é que não era um terrorismo, coisa subversiva, intrigas ou similares: não, o facínora sentia necessidade de alguma coisa, dava a entender, minha esposa vinha com aquela fala mansa e lá ia o otário, às dez e meia da noite, para um posto de conveniências comprar o que a Majestade estava precisando. Não tinha ponto da casa em que ele não entrasse, ou não aparecesse de surpresa quando menos era esperado, e o pudor de minha esposa me causava crises de acidez estomacal. E se ele estivesse ouvindo? Não, agora não. O pior é que ela olhava para ele com uma candura e um calor com que eu não lembrava de ter sido olhado. Sentia ciúmes, por que não confessar?
Quando ele adoecia – e ele adoecia uma vez por semana – minha esposa ficava preocupada, mal dormia, falava a toda hora de suas inseguranças a respeito da saúde dele, ficava mimando ele pra cá e pra lá. Mais um travesseiro? Mais uma coberta? E o ciúmes me corroendo por dentro, tirando nacos do meu estômago para aperitivar. Além disso, uma aura de respeitabilidade caiu sobre nós. Tinha que vir direto do serviço para casa, fui abolido do chopinho com os colegas, meu lugar foi rifado entre os estagiários da firma. Para mim, a tranqüilidade tinha acabado, definitivamente.
Cheguei a tramar o assassinato: sufocaria ele com o travesseiro, e ganharia minha esposa e minha vida de volta. Fácil assim. Pensei tudo nos mínimos detalhes. Caminhei até o quarto dele, e observei-o dormindo sobre uma poça de baba, as gengivas nuas visíveis. E nem isso pude fazer. Aliás, ando até feliz com ele. Pois não é que o facínora esses dias chegou para mim, emitiu um gritinho alegre e pela primeira vez me chamou de pai?
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