Ângelos
Foi assistindo ao curta-metragem Ângelo Anda Sumido que eu percebi que eu conhecia o Ângelo. Não o Ângelo específico, o Ângelo de quem falavam e por quem perguntavam, mas o Ângelo em geral, que aparece em milhares de conversas análogas todos os dias, mas só de passagem. Em quem falamos como se fosse um ponto de referência para determinado tempo passado, em que conhecíamos o Ângelo. Ângelo não importa, não consta, não faz diferença nem tem indiferença. É apenas uma citação, está naquela conversa como uma lembrança, não que nenhum dos dois realmente se preocupe com a vida de Ângelo. O Ângelo indiferente, sem rosto nem fisionomia, sem corpo, sem características, andando incólume, invisível no meio da multidão e tendo convivido com todas as pessoas num determinado tempo, depois desaparecido sem deixar vestígios.
Esse Ângelo, conheci aos milhares: criaturas feitas de névoa, que se encontram com você numa esquina da noite molhada de um fim de semana invernal para, depois de duas horas, sem deixar vestígios, desaparecerem para sempre. Apenas aparecem ali, interagem com você um minuto e depois – ZAP! – se foram. E não serão vistos novamente, nem lembrados com freqüência: apenas citados de acordo com o acaso, ou a associação de idéias. Terão se tornado apenas mais um marco, algo que serve apenas para localizar algum fato mais importante no espaço e no tempo; há milhares deles em cada existência; os Ângelos são aqueles caras que tiraram um sarro de você porque a roupa não era adequada à ocasião; aquele flanelinha que você acha que arranhou seu carro, o cara de cabelo lambido que conversou com você na fila do cinema e a quem você achou incrivelmente burro. Ou almofadinha. Ou nada disso.
Pessoalmente, acho que os Ângelos, mais que contingências necessárias à toda vida que pretende se arrastar em interação constante com outras, são um sintoma da época em que vivemos. Não há o que negar: somos impessoais. Basta olhar as ruas à noite, na hora do rush ou pela manhã, quando as pessoas estão indo para seus trabalhos com bafo de café e vida conjugal batida, ouvindo algum programa de rádio ainda mais vazio que a mente sonolenta: há uma pessoa em cada carro. Andando pela rua, não há quem o cumprimente; cada um está seguindo seu caminho, com o perdão da expressão, cagando para como pode estar o seu dia, ou conversando com um amigo que foi escolhido por ser parecido conosco, ter os mesmos gostos... em suma: poder propiciar alguma vantagem social, status ou mesmo alguma vantagem pecuniária. São os outros otários, que incompreensivos, cometem o sacrilégio de achar você um otário.
Cá entre nós, não dou a mínima. E também sei que não é exatamente isso que o filme queria passar. Pelo menos, não nesse nível. Mas, ao me perguntar onde andará o Ângelo, percebo que há milhares de Ângelos dispersos na cidade de concreto e grades, me cercando atrás de todas as cortinas de todas as janelas. Para onde vão os Ângelos depois que morrem? Com certeza para um céu especial, repleto de Ângelos invisíveis, que sequer podem ver uns aos outros. Assim, cumprem seu legado de solidão e mistério. Que são características básicas de todo Ângelo. De que se alimentam os Ângelos? Com certeza, de lembranças antigas. Por isso cruzaram com você uma noite. Ângelos são nostalgia, alegria, alergia, à sua revelia. Existem independentemente de você. Você é apenas uma morada provisória deles. Quando você se for, haverá uma revoada de Ângelos, de sua cabeça para a noite. E depois se dispersarão na cabeça de diversos outros otários. Como você.
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