Resenha de uma Obra Inconclusa
Foram encontrados na semana passada documentos manuscritos pelo filósofo Albert Lucksenheimer. O professor, que desenvolveu certo renome em suas análises da filosofia moderna, com críticas às vezes incompreensíveis à superficialidade de certos pensadores, provavelmente estava preparando alguns tomos contendo a súmula de sua própria filosofia, que há anos anunciava como a final e definitiva e cujos conceitos, ainda segundo o professor, necessitariam de tal capacidade de abstração que muitos dos chamados filósofos modernos deveriam aprender a gatinhar metafisicamente uma vez mais, para apreendê-los.
Na verdade, os documentos encontrados – e já encaminhados para o museu de Viena para análise mais detalhada – dedicavam-se puramente a reformular a concepção de mundo, com bases discrepantes. O resto da obra, se foi imaginado, jamais será escrito, o que provavelmente representa uma perda monumental para a filosofia moderna – uma vez que, sem o resto da obra, provavelmente não se poderá encontrar o fundamento para a parte que restou preservada nas mil e oitocentas folhas de papel comentadas pelo professor sobre a estrutura do real. Nelas, o professor usava uma sustentação de uma realidade puramente subjetiva, com fundamentos na psicanálise freudiana e possível interpretação do cosmos através de sinais simples, como o fato de a luz incidir por uma fresta incrivelmente pequena de uma janela ou no passeio circular de uma andorinha pelo céu.
Para o professor, o mundo, e mesmo o próprio universo não eram senão um reflexo de seus desejos, de sua vontade, em uma concessão a Schopenhauer até então inédita em sua carreira – considerava-o “por demais obtuso”. Construído por nós mesmos à nossa volta, como uma maneira de nos sentirmos felizes: o mundo como nada mais do que um instrumento de felicidade. Dele, obtemos e criamos o que nos é necessário, mesmo que por vezes nos pareça doloroso ou impiedoso. Assim, o que sofrem imaginaram em torno de si o sofrimento, enquanto os que são felizes imaginaram em torno de si a felicidade; mas há felicidade também no sofrimento; na verdade, as pessoas que dizem sofrer são felizes por lamuriar seu sofrimento (pensamento embasado nos manuscritos por uma extensa análise da obra de Dostoiévsky, com diversas citações de Baudelaire, Augusto dos Anjos e Nietzsche). Arremedando o pensador francês Heraldo Barbuy, autor de Zaratustra Morreu: a infelicidade é tão profunda que, esticando-se ao infinito, que sabidamente é um conceito circular, encontra em seu percurso, na outra ponta (aqui, clara referência ao ponto de partida), a felicidade. Portanto o professor cria piamente que o mundo, com seus jugos e obrigações, é estritamente autoimposto, e que uma pessoa com a mente sadia e coragem suficiente saberia com certeza livrar-se destes jugos. E aqui sustenta-se a posição mais controversa do professor, que o levou ao claustro número 25 do hospício São Pedro, em Porto Alegre, cidade onde residia desde 1989 e onde viria a morrer, seis anos depois, acometido por uma forte pneumonia.
Ao desestruturar o real como o percebemos, pressupondo que o mundo não é senão uma criação subjetiva, sem nenhum fundamento, admite-se que é possível modificá-lo completamente a partir de uma tomada de posição diferente em relação ao próprio mundo. Esta seria a explicação plausível para as viradas da sorte, ganhos e perdas de fortunas, às vezes, que modificam completamente uma vida, demostradas em exaustivo capítulo descrevendo os resultados da roleta de uma famosa casa de jogos em Las Vegas, comentadas e inventariadas pelo professor durante o espaço de um mês. Seriam subterfúgios, métodos criados pela psiquê para adequar a realidade ao novo posicionamento em relação ao mundo e à vida. Tais sinais poderiam ser interpretados, segundo o professor, através da psicologia freudiana, de quem ele era incondicional admirador. Por exemplo, uma rachadura em uma parede ou uma obra de arte internacionalmente cultuada devorada pelo bolor ou pelo tempo poderia ter uma relação direta, de causa e conseqüência, com o sucesso que um determinado quadro ou escola de arte recentes causassem no mercado internacional; assim como o trauma de infância, soterrado, bloqueado na mente de um comandante de esquadra poderia causar a rachadura no casco do navio, que terminaria por destruí-lo, bem como a todos os passageiros. A água é fluida e abundante no planeta porque os homens têm saudades da fluidez do ventre materno; o pênis se divide em milhares de objetos materiais, como carros, dinheiro, esculturas, postes – uma clara menção à reificação frankfurtiana –, até mesmo um charuto; um prédio que é demolido no centro de uma metrópole simboliza o medo de castração de um mendigo do Indostão. Para cada evento há um sinal claro; por exemplo, se um homem com síndrome de inferioridade é descoberto no mundo oriental, é muito provável que vá acontecer um ato terrorista no ocidente. Se um ocidental é impotente, provavelmente um país oriental será bombardeado.
A existência do outro, neste complicado processo, se explicaria logicamente através de apenas duas maneiras, como o leitor facilmente pode perceber: uma, se não existissem outras pessoas, sendo a realidade do Outro apenas dissimulações de diferentes facetas, desejos reprimidos ou personalidades discrepantes do Eu, o sujeito criador do mundo; outra, se existissem Outros, e o mundo formado por cada um deles fosse um amálgama de todos, onde estes vivessem, sendo constantemente alterado por suas reações, ações, pensamentos, sendo nada mais que um reflexo de seus traumas e complexos. Esta segunda hipótese foi a adotada pelo professor, com a pequena ressalva de que todos os Eu coexistiam no mesmo mundo, mas que o alteravam individualmente, e guardavam dele diferentes recordações. Assim o passado individual e os fatos lidos em livros de história não seriam mais que uma criação inconsciente do Eu, bem como todos os romances e histórias ouvidos. Tal teoria surpreende pela força de seus argumentos, bem como pela crença na predestinação, embora não nos moldes clássicos: um psicanalista poderia, por exemplo, prever o futuro de um paciente pela análise de sua psiquê, de seus traumas, bem como qualquer desastre natural ou psicológico que viria a ser sofrido por este paciente, ou que suas neuroses poderiam causar. Com um exame da simbologia dos números para cada paciente, poderia, por exemplo, prever o dia de sua morte, ou o do nascimento de seu primeiro filho. Bastaria analisar com cuidado para entender não apenas a mente do Outro, mas também o universo que o rodeava. Talvez, com o desenvolvimento desta ciência, ensinando-o a modificar o mundo a seu bel-prazer, em vez de ensiná-lo a sujeitar-se ao mundo existente e a conviver com seus traumas. Uma libertação maior do que já sonharam todos os filósofos, portanto, moldando tudo a seu bel-prazer, com o treino.
Assim, o precedente maior para estar completamente livre das meadas psíquicas restritoras seria exatamente desligar-se do mundo ao redor, não se importando com as suas regras de conduta ou mesmo as físicas, processo que fatalmente acabaria em alterar não apenas a percepção sensível do mundo, mas também tudo o que aparenta ser a sua materialidade. Aplicando à risca sua teoria e tentando alcançar a perfeição de sua concepção de mundo, o professor foi encarcerado, ao ser encontrado nu em seu apartamento, devorando uma enciclopédia – o que, segundo ele, com o treino, o capacitaria a apreender todo o conhecimento contido nas páginas pelo simples fato de devorá-las, além de resolver considerável problema que assola a humanidade, como a extrema carência de alimentos e a impossibilidade de digerir a celulose.
Desnecessário dizer da incompreensão dos ditos cientistas e analistas, que o consideraram completamente louco, e o recolheram ao hospício onde viria a falecer seis anos depois, nu e tomado por forte pneumonia, em uma noite invernal, após ter se entupido com jornais velhos extraviados do almoxarifado - na época, insistia novamente em andar nu, pois há muito já havia inventado para si um mundo onde as roupas, e tantas outras convenções, não passam de vaidades e complexos.
Na verdade, os documentos encontrados – e já encaminhados para o museu de Viena para análise mais detalhada – dedicavam-se puramente a reformular a concepção de mundo, com bases discrepantes. O resto da obra, se foi imaginado, jamais será escrito, o que provavelmente representa uma perda monumental para a filosofia moderna – uma vez que, sem o resto da obra, provavelmente não se poderá encontrar o fundamento para a parte que restou preservada nas mil e oitocentas folhas de papel comentadas pelo professor sobre a estrutura do real. Nelas, o professor usava uma sustentação de uma realidade puramente subjetiva, com fundamentos na psicanálise freudiana e possível interpretação do cosmos através de sinais simples, como o fato de a luz incidir por uma fresta incrivelmente pequena de uma janela ou no passeio circular de uma andorinha pelo céu.
Para o professor, o mundo, e mesmo o próprio universo não eram senão um reflexo de seus desejos, de sua vontade, em uma concessão a Schopenhauer até então inédita em sua carreira – considerava-o “por demais obtuso”. Construído por nós mesmos à nossa volta, como uma maneira de nos sentirmos felizes: o mundo como nada mais do que um instrumento de felicidade. Dele, obtemos e criamos o que nos é necessário, mesmo que por vezes nos pareça doloroso ou impiedoso. Assim, o que sofrem imaginaram em torno de si o sofrimento, enquanto os que são felizes imaginaram em torno de si a felicidade; mas há felicidade também no sofrimento; na verdade, as pessoas que dizem sofrer são felizes por lamuriar seu sofrimento (pensamento embasado nos manuscritos por uma extensa análise da obra de Dostoiévsky, com diversas citações de Baudelaire, Augusto dos Anjos e Nietzsche). Arremedando o pensador francês Heraldo Barbuy, autor de Zaratustra Morreu: a infelicidade é tão profunda que, esticando-se ao infinito, que sabidamente é um conceito circular, encontra em seu percurso, na outra ponta (aqui, clara referência ao ponto de partida), a felicidade. Portanto o professor cria piamente que o mundo, com seus jugos e obrigações, é estritamente autoimposto, e que uma pessoa com a mente sadia e coragem suficiente saberia com certeza livrar-se destes jugos. E aqui sustenta-se a posição mais controversa do professor, que o levou ao claustro número 25 do hospício São Pedro, em Porto Alegre, cidade onde residia desde 1989 e onde viria a morrer, seis anos depois, acometido por uma forte pneumonia.
Ao desestruturar o real como o percebemos, pressupondo que o mundo não é senão uma criação subjetiva, sem nenhum fundamento, admite-se que é possível modificá-lo completamente a partir de uma tomada de posição diferente em relação ao próprio mundo. Esta seria a explicação plausível para as viradas da sorte, ganhos e perdas de fortunas, às vezes, que modificam completamente uma vida, demostradas em exaustivo capítulo descrevendo os resultados da roleta de uma famosa casa de jogos em Las Vegas, comentadas e inventariadas pelo professor durante o espaço de um mês. Seriam subterfúgios, métodos criados pela psiquê para adequar a realidade ao novo posicionamento em relação ao mundo e à vida. Tais sinais poderiam ser interpretados, segundo o professor, através da psicologia freudiana, de quem ele era incondicional admirador. Por exemplo, uma rachadura em uma parede ou uma obra de arte internacionalmente cultuada devorada pelo bolor ou pelo tempo poderia ter uma relação direta, de causa e conseqüência, com o sucesso que um determinado quadro ou escola de arte recentes causassem no mercado internacional; assim como o trauma de infância, soterrado, bloqueado na mente de um comandante de esquadra poderia causar a rachadura no casco do navio, que terminaria por destruí-lo, bem como a todos os passageiros. A água é fluida e abundante no planeta porque os homens têm saudades da fluidez do ventre materno; o pênis se divide em milhares de objetos materiais, como carros, dinheiro, esculturas, postes – uma clara menção à reificação frankfurtiana –, até mesmo um charuto; um prédio que é demolido no centro de uma metrópole simboliza o medo de castração de um mendigo do Indostão. Para cada evento há um sinal claro; por exemplo, se um homem com síndrome de inferioridade é descoberto no mundo oriental, é muito provável que vá acontecer um ato terrorista no ocidente. Se um ocidental é impotente, provavelmente um país oriental será bombardeado.
A existência do outro, neste complicado processo, se explicaria logicamente através de apenas duas maneiras, como o leitor facilmente pode perceber: uma, se não existissem outras pessoas, sendo a realidade do Outro apenas dissimulações de diferentes facetas, desejos reprimidos ou personalidades discrepantes do Eu, o sujeito criador do mundo; outra, se existissem Outros, e o mundo formado por cada um deles fosse um amálgama de todos, onde estes vivessem, sendo constantemente alterado por suas reações, ações, pensamentos, sendo nada mais que um reflexo de seus traumas e complexos. Esta segunda hipótese foi a adotada pelo professor, com a pequena ressalva de que todos os Eu coexistiam no mesmo mundo, mas que o alteravam individualmente, e guardavam dele diferentes recordações. Assim o passado individual e os fatos lidos em livros de história não seriam mais que uma criação inconsciente do Eu, bem como todos os romances e histórias ouvidos. Tal teoria surpreende pela força de seus argumentos, bem como pela crença na predestinação, embora não nos moldes clássicos: um psicanalista poderia, por exemplo, prever o futuro de um paciente pela análise de sua psiquê, de seus traumas, bem como qualquer desastre natural ou psicológico que viria a ser sofrido por este paciente, ou que suas neuroses poderiam causar. Com um exame da simbologia dos números para cada paciente, poderia, por exemplo, prever o dia de sua morte, ou o do nascimento de seu primeiro filho. Bastaria analisar com cuidado para entender não apenas a mente do Outro, mas também o universo que o rodeava. Talvez, com o desenvolvimento desta ciência, ensinando-o a modificar o mundo a seu bel-prazer, em vez de ensiná-lo a sujeitar-se ao mundo existente e a conviver com seus traumas. Uma libertação maior do que já sonharam todos os filósofos, portanto, moldando tudo a seu bel-prazer, com o treino.
Assim, o precedente maior para estar completamente livre das meadas psíquicas restritoras seria exatamente desligar-se do mundo ao redor, não se importando com as suas regras de conduta ou mesmo as físicas, processo que fatalmente acabaria em alterar não apenas a percepção sensível do mundo, mas também tudo o que aparenta ser a sua materialidade. Aplicando à risca sua teoria e tentando alcançar a perfeição de sua concepção de mundo, o professor foi encarcerado, ao ser encontrado nu em seu apartamento, devorando uma enciclopédia – o que, segundo ele, com o treino, o capacitaria a apreender todo o conhecimento contido nas páginas pelo simples fato de devorá-las, além de resolver considerável problema que assola a humanidade, como a extrema carência de alimentos e a impossibilidade de digerir a celulose.
Desnecessário dizer da incompreensão dos ditos cientistas e analistas, que o consideraram completamente louco, e o recolheram ao hospício onde viria a falecer seis anos depois, nu e tomado por forte pneumonia, em uma noite invernal, após ter se entupido com jornais velhos extraviados do almoxarifado - na época, insistia novamente em andar nu, pois há muito já havia inventado para si um mundo onde as roupas, e tantas outras convenções, não passam de vaidades e complexos.
Um comentário:
Vc tem o zaratustra morreu? Posta mais dele para mim!
Abs do Lúcio Jr!
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