terça-feira, dezembro 05, 2006

Era uma Noite Escura e Tempestuosa...

...e a janela não parava de bater. A luz tinha ido para onde quer que a luz vá quando falta energia, e o clima era propício para uma história de terror à luz de velas. O problema é que eu estava sozinho em casa, e a história engasgada em minha garganta. Contar pra quem? Fiquei remoendo a história, pensando em maneiras de torná-la mais assustadora. A minha inspiração era O Gato, de Poe.
Bom, em todas as cidades tem essas velhinhas, sabe? Moram sozinhas, têm centenas de gatos e são de uma doçura indescritível para com as pessoas ao redor.Qualquer consideração para com elas é um elogio, sentem-se lisonjeadas se fazemos uma coisa simples, como segurar a porta ou levar o lixo para elas. É até uma coisa triste, porque dá pra sentir que elas se consideram excluídas do convívio humano por sua velhice. Nas sociedades primitivas, os idosos seriam detentores do saber, os contadores de histórias. Mas nós, cheios de soberba e preconceitos, podemos buscar saber e histórias em qualquer parte, a sociedade da informação. A propaganda nos dirige para a idolatria dos corpos jovens e rijos, e os velhos são relegados a segundo plano. Ou terceiro. Têm de pedir desculpas por continuar existindo depois do prazo de validade ter passado.
Eis que divago. Bom, essa velhinha tem seus gatinhos. Tem suas plantas. Tem suas netinhas que a visitam uma vez por mês, se tanto. E não querem ouvir histórias. Mas gostam dos biscoitos. Infelizmente, essa velhinha também tem um acúmulo de colesterol em uma artéria importante, e acaba tendo um derrame massivo, caindo no meio da sala e quebrando o conjunto de chá. A velhinha, depois de várias horas, volta a si, mas não consegue se mover nem se levantar. É aí que entram os gatinhos.
A comida de gatos está toda em latas, na prateleira. O apartamento está fechado, e eles não podem sair. Pouco a pouco vão chegando perto da dona. Uma parte selvagem de seus pequenos cérebros começa a perceber a possibilidade de uma presa fácil... Dá pra entender onde é que eu vou chegar. Bom, por dias a velhinha é devorada aos pouquinhos, até que acaba morrendo e o cheiro atrai os vizinhos.
O mais macabro dessa história é que pode acontecer. Fácil. Aliás, não aconteceu uma vez na sua cidade? Ou é só uma lenda urbana? Enfim, com a cabeça cheia da história, respirando curto, sem ter o que fazer na noite tempestuosa, lembrei de uma garrafa de cabernet pela metade na geladeira. Lembrei também que um bom vinho é um bom companheiro nesse tipo de noite. Talvez pudesse escrever num caderno, na companhia do Conde (de Foudauld, o vinho), e assim pasar as horas até que o sono viesse. Fui na geladeira com o toco de vela (grudado numa tampa de vidro de conserva), abri a porta, peguei o bruto e aí eu vi o gato na área de serviço.
Quase me caguei. Era um gato preto, os olhos brilhavam na luz da vela. Parecia monstruoso (uma barata teria parecido monstruosa para mim, naquele estado de espírito). Miou alto, assustado, e botou sebo nas canelas, caiu fora, deixando um cara quase borrado tentando acalmar o coração. Claro, na tempestade, o gato devia ter entrado na área para se livrar da chuva, e a droga da sincronicidade conspirou para eu levar um susto enorme. Gato vadio não falta por aqui.
Só que eu moro no nono andar...

Nenhum comentário: